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Asas

by Clangor

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1.
No céu de lama, no pântano de mármore e de nuvem, debatem-se braços furiosos sem saber se voam ou afogam. É essa guerra tremenda de tentar se localizar quando qualquer direção é outra, olhar ao redor sem se mover, e querer não ter de cantar sempre a mesma cantiga de bastardo sem trono a reclamar, tentar sorrir e acabar por escarnecer, não pousar nem nadar, estar entre - o quê.
2.
Um canto de orgulho e de tristeza. Sussurro rubro que ecoa pelos quatro ventos da escura solitária em meu peito. Pulsar, estender, contrair, continuar. O ritmo vacila, o tempo se perde, o tempo inexiste, se perde o compasso. Cambaleio, infarto, desfaleço, desmaio. Sonho ou deliro. É uma montanha, um vulcão morto e temido, é o cume donde perscruto os movimentos de guerra das massas furiosas de sangue e de lava o entrechoque das minhas contradições. É desse alto desejo de riso que me deixarei cair no exato instante da vitória e meus pés nus queimarão no frio intenso do gelo formado pelo silêncio sem vento e sem palavras possíveis. Mas é ainda acima que me deixo levar; do cume da montanha elevo os olhos à cúpula profunda de azul, aspiro as nuvens brancas que lhe mancham a pureza e cuspo neve morro abaixo: esculpo meu caixão de solidão e visto-o como se fosse minhas asas perdidas. O vento dentro de mim ecoa em sístoles e diástoles atropeladas, levando a lama vermelha o pó que sou e voltarei a ser aos meus olhos, que transmutam dela a fortaleza e a opacidade em brilho fugaz e transparências de azul.
3.
Consternado, ando entre milhares de seres e sinto-me só. Ao resplandecer do dia adentro na escuridão dos meus pensamentos e não encontro saída. Minha alma arde em febre e clama por paz, mas a cura e o idealismo estão distantes das possibilidades. Minha turva visão não vislumbra a benignidade do existir: tornei-me uma faca que dilacera tuas ilusões, imprevisível, destrutivo, uma bomba a explodir. O subterfúgio da vida é a banalidade e a impetuosidade, e a inconstância é a força. Clamo por uma fuga, algo que perdure, algo que ao menos me isente de padecer, todo o resto é a apenas paliativo, já estou embriagado pelo ódio corrosivo. Como resignar-me sem estar ausente? Garçom, mais vinho.
4.
Pus meu coração ainda pulsando na bandeja. Quem nele cravou os dentes: eu. E sustentando com a macerante pressão da feroz mordida, eu era dentro dele. Mergulhei num mar só de espinhos e farpas, alimentado pelos rios desesperados de sangue, que fluia em ânsia fervente pela vida, que quase se perdia na palpitante parte de mim. Meu rosto tornou-se vermelho como o fogo do ódio que queimava junto ao grito emitido quando caí dentro da câmera inóspita em meu peito. Senti cada espinho rancoroso rasgar a minha pele e fazer dela essa farrapo que mal cobre minhas carnes. Devo seguir de feridas abertas. Não devo nem quero estar são e engolir o veneno que se forma num suave coração cuja a queda o mantém de pé.
5.
Seres supostamente caracterizados como racionais submetem todos os outros seres vivos a sua deplorável cultura especista, cruel, fundamentada em mentiras: o consumo de carne é uma idéia tão arcaica quanto sem fundamento. Milhares de animais são mortos para sustentar um sádico prazer; sinta teus prazeres saciados através do genocídio de milhares de animais: banhe-se de sangue inocente. Será que não queremos enxergar o que está diante de nossos olhos e iremos continuar vivendo atrás de dor e sofrimento, tratando seres considerados inferiores como escravos e continuar subjugando vidas em nome de uma inverdade tão descarada quanto pretensiosa?
6.
A hipocrisia ri pois vê no mundo um espelho; gargalha, a sórdida, alto, levantando a taça em júbilo; faz parte de nossa flébil e servil existência; a vontade se embate e, no embate, sucumbe. Vamos nos sentar à mesa com ela, ofertar-lhe a cabeceira; e matrona de nossa vivência ridícula, ela erguerá a taça em cujo vinagre se refletirá nosso fétido conforto e nossa pudica demonstração de civilidade. Beberemos vinagre sem fazer caretas? Acética farsa, tão pouco anti-séptica, nossos fraques engomados são trapos e nosso perfume nos deveria causar ânsia. Entanto sorrimos – já estamos contidos? Talvez bem sentados na macia poltrona da convenção, deixando acorrentar-nos à imobilidade da desconfortável passividade, fervilhante, qual pontiaguda farpa no macio acento, de maneira a explodir em agente poluente. Em cáries infestando a amarelidão hipócrita, desenbestando na incivilidade de cagar à mesa e buscar a ressaca de um vinho doce descarado, desenfreado. Olhemos para o céu e vomitemos em nossas caras hipócritas!
7.
Já se foi a jamais experienciada vida em que eu costumo crer, vez por outra, como às vezes desejo uma sonata toda em acordes maiores depois que a dissonância amargou com seu fel meus ouvidos e coração. Já se foi a chance única e silenciosamente manifesta da minha flor ser só flor, do perfume penetrar narinas e pele apenas - sem reminiscências ou imaginações -, da relva ser a cama vespertina para um sono sem sonhos, mas meus olhos estão cheios de Levy Strauss e Fractais, mas sequer confio na bondade que me resta e me é inerente: sigo os dias derramando na terra as sementes e o sal com as mãos piedosas e egoístas que passam horas sem fim me mostrando a mim mesmo. Estou infectado como o solo em que piso, tudo o que poderia crescer necessita umidade e já não creio no rio que corre daqui de dentro até o outro lado do horizonte, o vejo qual lagoa que se formara nas últimas chuvas e que os dias de sol cáustico transformaram em estagnação e vício: água que não limpa, lama que não se molda e da qual nada é criado – nem planta, nem adão. Mas o obscurantismo e a arrogância niilista que me possuem, acorrentando meus movimentos, meu sorriso, minha boa-fé, fazem de mim o outro compositor surdo e mal-amado e só aqui, mentalmente, a confusão de distorções e dissonâncias são ouvidas qual cello e oboé – promessa de melodia em decurso, de tempo escoando, de lama no leito – decantação. Que venham os segundos temporalmente ordenados, os compassos enfileirados, que adentrem minha atonalidade de cítara, meu universo sem idade nem marxismo, que brinquem de ciranda com a microfonia e o overdub, com meu satanismo de torre de cristal, e que haja, aí, a promessa de lótus desabrochando no lodo adormecido, da mão enlameada, da mão ensanguentada: ser a imagem do eu-oleiro, do eu que cria e molda o coração arrancado do próprio peito.
8.
Sinto-me preso diante de tuas mentiras. Tentaste castrar os últimos resquícios de minha fragmentada liberdade. Solto um grito desesperado que ecoa, mas a lugar algum chega. Sentimentos de agonia e impotência tramitam em meu ser e impulsionam-me a fazer parte desse jogo imundo onde quem joga os dados não sou eu. Numa infinita batalha a auto-exclusão é intentada, enquanto vis verdades absolutas são disseminadas. Nego-me fazer parte desse sentimentalismo institucionalizado e dessa estúpida massa, pois a cada minuto que respiro esse ar pútrido sinto minhas vísceras sendo infectadas! Vou subsistindo como um ser inanimado cuja sensibilidade para o prazer foi extinta. Insipidamente carrego a trágica existência, esse fado sobre minhas costas.
9.
Quando as feras que o mundo sustenta me rodeiam, mostrando seus dentes engrenagens de uma moenda destinada a todos nós e ameaçam processar minhas carnes, descartando minha alma e meus ossos, fecho os olhos e fujo. Os ruídos da civilização, o tilintar da civilidade me embalam e os padrões desses sons cinzentos entre meu ouvido e meu cérebro, tornam-se os loops sobre os quais componho minha aquarela de regatos e minha coreografia de campos em flor. A fuga é ainda um espasmo teimoso do meu eu que insiste na luta pelo direito inalienável e indestrutível de usufruir da ternura que eu eu primitivo fareja e exala. FEROMÔNIO E SUOR LÍNGUAS E BALLET EMBRIAGUEZ E AMOR OLDRICH NOVY E ASTAIRE Os movimentos coordenados - someone always there to catch me - e as melodias felizes que assobio distraído enquanto tento viver meu melancólico cotidiano de inadequação e de olhares incompreensíveis de reacionários moderados e revolucionários ortodoxos têm uma beleza trágica que vida confortável alguma, que manifestações objetivas de ódio e rechaço jamais saberão. Fecho os olhos e me fecho em mim mesmo porque minha visão interior é sempre turva, aceito que a máquina ruidosamente molde meu alderredor e crio do ruído minha canção interna porque cansei de me lamentar das feridas que o ciclo mecanizado do mundo me faz. Quero rir muito e rodopiar cento e sete vezes até cair sobre a relva e beijar loucamente ainda que os rodopios sejam os cento e sete passos que me levarão a pender de um cadafalso na certeza conscientemente equivocada de que nenhum violino é tangido pelo arco da fatalidade. Sigo meu coração e sei que estou certo em meus erros.

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released October 6, 2004

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Clangor São Paulo, Brazil

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